sexta-feira, 4 de abril de 2008

Porque eu não sou pintor

Eu não sou pintor, sou poeta.
Por quê? Eu acho que preferiria ser
pintor, mas não sou. Bem,


por exemplo, Mike Goldberg
começa um quadro. Eu dou
uma passada. "Senta e bebe alguma coisa",
ele diz. Eu bebo; nós bebemos. Eu dou
uma olhada."Você pôs SARDINHAS neste."
"É, precisava de alguma coisa ali."
"Ah." Eu vou e os dias vão-se
e dou outra passada. O quadro
está indo, e eu vou, e os dias
vão-se. Dou uma passada. O quadro está
pronto. "Cadê SARDINHAS?"
Tudo o que sobrou são
letras, "Estava exagerado", diz Mike.


E eu? Um dia começo a pensar sobre
uma cor: laranja. Eu escrevo um verso
sobre laranja. Não demora a tornar-se
uma página inteira de palavras, não de versos.
Então, mais uma página. Deveria ter
tantas coisas mais, não de laranja, de
palavras, de como laranja é horrível,
e a vida. Dias vão-se. É assim mesmo
em prosa, eu sou poeta de verdade. Meu poema
está pronto e eu ainda não mencionei
laranja. São doze poemas, eu chamo de
LARANJAS. E um dia numa galeria
eu vejo o quadro de Mike, chamado SARDINHAS.

Frank O'Hara (tradução: Ricardo Domeneck)

Corte transversal do poema

A música do espaço pára, a noite se divide em dois      pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando, com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.
A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.
Só tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.

                                                                  Murilo Mendes